De dentro para fora
Existem diversas casas em Oiã, tantas que nem eu sei dizer: brancas, amarelas, verdes, vermelhas e de muitas outras cores. Copiam-se umas às outras e perdem-se de vista. Nenhuma, porém, é tão misteriosa como a casa mais antiga da vila.
Na verdade, trata-se de um pequeno palácio esquecido no tempo, abandonado e quase sem vida — quase, porque ainda se ouvem pássaros e se veem lindos gatos ronronantes a brincar nos jardins em volta. Mesmo assim, diz-se que um velho conde terá lá vivido há centenas de anos e que a casa se tornou assombrada. Contam-se histórias de uma misteriosa mulher, ou até de uma família inteira, que ali teria vivido.
Pouco se sabe sobre aquele palacete e a sua história; o que se soube perdeu-se no tempo. Havia algo que habitava a casa — e não eram só aranhas, baratas, ratos ou gatos cinzentos. Um fantasma vivia tranquilamente dentro daquelas paredes. Não se ouvia. Não era um fantasma qualquer, nem tinha um ar assustador como poderíamos pensar. Na realidade, nem se via: era uma espécie de homem invisível, ou lá como se chamam as coisas que a gente não vê. Também não era conde; de conde nada tinha. Mas era um fantasma, fazia as coisas que os fantasmas fazem e, curiosamente, tinha medo de fantasmas.
Todos os dias, pela manhã, depois de várias meias-horas a passear pelo jardim labiríntico, dirigia-se à biblioteca que ficava por baixo da casa, acessível apenas através de um mecanismo secreto no salão de música. Perto da janela havia um gancho junto a uma estrutura de ferro onde se prendia o cortinado. Três voltas à esquerda, duas à direita e uma ligeira pressão para dentro — e, automaticamente, no lado oposto, junto ao chão, abria-se uma escada em caracol.
Foram poucos os proprietários que conheceram a sua existência, ao contrário desse ser invisível que já dominava a engenhoca desde o início da construção. A escada de madeira dava acesso a uma antiga biblioteca, tão antiga quanto ele, tão antiga quanto as paredes altas que guardavam os livros em estantes de carvalho escurecido, onde o cheiro do papel se confundia com o da madeira. O teto erguia dez cúpulas, minuciosamente decoradas com afrescos; junto às estantes, longos escadotes de madeira. Os livros preenchiam as paredes — pequenos, grandes, milhares — cuidadosamente catalogados e numerados.
Havia livros de todos os tipos e tamanhos: grandes livros de culinária com capas duras e títulos em letras largas; enciclopédias de saúde em vários volumes, com capas de couro e letras douradas; aventuras e romances; poesia em grossas capas vermelhas, azuis e pretas; crimes inventados, anedotas e adivinhas; livros para crianças e publicações de várias épocas.
No centro da biblioteca, um enorme cadeirão de veludo verde marcava território. Ao lado, uma pequena mesa de madeira ornamentada lembrava a Floresta Negra. Se as manhãs eram passadas no jardim, o resto do dia era ali, na companhia de milhões de páginas. Lia e relia. Eram a sua companhia; juntos faziam uma ótima sociedade. Ler trazia-o de volta à vida. Lia um parágrafo, cerrava os olhos e visualizava: as pessoas viam-no e falavam-lhe; ele podia tocar os objetos e sentir; podia voltar a sentir todos os sentimentos.
Toda a sua existência ganhava sentido — como se renascesse das palavras e vivesse aquelas experiências vezes sem conta, as vezes que quisesse. Fascinou-se por Júlio Verne; e havia outros que, como ele, não lhe limitavam a imaginação.
Durante centenas de anos, ele leu e releu cada parágrafo, cada página. Mas, naquele dia, depois de observar os pássaros que voavam sobre os ratos que fugiam dos gatos, rodou o engenho: três voltas à esquerda, duas à direita, leve pressão — e desceu a escadaria. Num ápice, tocava as lombadas como se as pudesse ler num só instante, letra a letra, palavra a palavra. Subiu um escadote, e outro, e mais outro até à última estante do último andar, lá em cima, perto do teto.
Reparou que, ao lado do livro número novecentos e trinta e quatro, estava um volume sem numeração. Um livro desconhecido. Não compreendia por que não estava numerado. Aproximou-se e leu o título: Vida. Pensou: “Ora esta! Por que estava um pouco mais atrás? E por que nunca o teria lido nem sequer notado que aqui estava?”. Passou a mão pela lombada e retirou-o devagar, como se manobrasse algo frágil.
O livro tinha capa fina e muito macia — um veludo delicado de cor suave. Exalava um cheiro diferente de todos os outros: doce perfume a jasmim misturado com um leve odor a caramelo. Olhou para o livro — e o livro olhou-o de volta, como se o chamasse. Pela primeira vez, não sabia se escolhera o livro ou se o livro o escolhera a ele.
Não o abriu. Apenas o observou, curioso como uma criança. Tirou-lhe as medidas com os olhos, aspirou-lhe o cheiro, deixou que os dedos viajassem pelo título áspero cravado na capa. Que estariam ali escrito? Que viagem era esta que ainda não fizera? Desceu ao solo e foi até ao cadeirão. Sentou-se. Pousou o livro na pequena mesa.
Noutras circunstâncias estaria impaciente; agora, não. Apenas curioso: como pudera um livro escapar-lhe? Há quanto tempo estaria ali? Quem o teria trazido? Questões talvez sem resposta — e que talvez nem precisassem de resposta.
Pegou no livro, contemplou uma vez mais a textura suave e o título Vida, que brilhava diante dos seus olhos. Abriu a primeira página — e nada. Vazio. Folheou a segunda, a terceira e todas as que se seguiram — nada: nem uma única letra, nem uma palavra. Confuso, fechou o livro. Teve a sensação de que a capa o fitava. Pousou-o na mesa. No momento em que se levantava, o livro abriu-se sozinho: letras brotavam na primeira página como tinta numa tela mágica.
“Mas que magia é esta?”, pensou. Lera livros de magia, feitiços e outros; nunca um livro lhe quebrara a barreira do mundo físico. Depois de algum tempo, as letras tornaram-se nítidas e podia ler-se:
De dentro para fora
De fora para dentro
De dentro tudo trarás
De fora nada levarás
Ainda mais intrigado, aproximou-se. As palavras formavam-se letra a letra e, depois de lidas no pensamento, desapareciam sem deixar rasto — linha após linha, parágrafo após parágrafo. Isso não o impediu de continuar. Leu as páginas seguintes até começar a sentir o peso do seu corpo. As pernas, antes leves e sem forma, eram agora pernas de menino; os braços, de carne e osso; as mãos pequenas prendiam-se às da mãe e do pai.
Ouvia o riso das crianças e misturava-se com elas. Brincava; a sua voz ecoava como as vozes dos outros meninos. Era o rapaz que ficara perdido no tempo. Brincou e brincou com os amigos; construiu cavalos de batalha em palha, espadas de madeira, casas nas árvores — todas as brincadeiras do seu tempo.
Chegou a uma página em que o corpo mudou: jovem adulto, lutava para não sentir o calor intenso do fogo que lhe lembrava a perda do pai e da mãe. Chorou. Chorou tanto que parou de ler; soluçava; as lágrimas corriam-lhe pela face. No meio da multidão, tentava salvar vidas. Um adulto a quem fora revelada a dor da perda — e, de dentro para fora, era a única coisa que podia ser.
Parágrafo após parágrafo, voltou a sentir a alegria de viver: nasceu-lhe um filho; depois, uma filha; e outro filho; e mais outro. Era feliz. A sua companheira era a mulher que amava. De fora para dentro, nada o preenchia; eram o amor e a fraternidade da família que lhe davam conforto.
A pele macia ganhou rugas. Envelhecia e lia — como se a vida ecoasse naquelas páginas e, agora, o mundo fizesse sentido. Os netos corriam pela casa, desarrumavam-lhe os livros, arrancavam flores do jardim e puxavam o rabo aos gatos; mas também lhe tocavam as mãos e ele podia sentir, brincar e rir com eles. E lembrou-se, uma vez mais, de que a sua vida era feliz.
Muito velho, sentiu-se deitado numa cama, rodeado pelos filhos e netos. Compreendeu: de fora nada levaria para o grande desconhecido; levaria, sim, a beleza interior que experienciara em vida. Prestes a terminar a última palavra da última página, fechou os olhos. O corpo estremeceu uma última vez. Pousou o livro mágico na velha mesa, levantou-se — e dissolveu-se nos últimos raios de luz da tarde.