segunda-feira, abril 22, 2019

Os velhos

Naquele verão ela não veio, nem naquele nem nos outros que se seguiram. Passaram invernos e todas as estações do tempo, tantas que quase caíram em esquecimento. Terá sido um dia após o outro, uma semana após outra ou talvez ano após ano, até que as canções passaram de moda, como que, paradas num tempo que já não existia, mas as músicas deles não tinham parado, pelo menos para eles. Por vezes ele recordava no mesmo café de sempre, escutando com o ouvido da memória a canção Woman de John Lennon, outras subia-lhe o ritmo dos Rolling Stones, preenchiam-no por momentos com Wild Horses. Foi assim durante trinta e cinco anos. – Que fazes aqui? – Pergunta o velho sem medo. – Vim ver-te. – Responde ela. – Foda-se! Agora?! – Não me fales assim, nunca é tarde para reparar os nossos erros. Com os olhos postos no chão o velho diz: – Erros? Já não sei do que falas. Estás velha! Mas bonita. – Tu também, ainda tens os mesmos olhos. Vezes sem conta o velho ensaiava o discurso, falava sozinho como se ela ali estivesse para o ouvir. Sentava-se à janela e observava o tempo passar, imaginava as mãos dela nas suas e lembrava o toque que o deixava calmo. Passaram os Beatles, os The Doors e os Xutos, como se fossem composições numa estação de rádio ou a banda sonora da sua vida. Trim trim três da manhã, o telefone acorda o velho, meio sonâmbulo, atende com uma voz amarfanhada: - Estou? - João? És tu? - Sim! Quem fala? - Sou eu, a Maria. Não sabia se havia de rir ou chorar, nunca fizera tanto sentido a nota musical que marcara a presença do silêncio nos livros de música, silêncio, um velho e companheiro demasiado presente. - João estás aí? – Repetiu ela - Sim estou, é muito tarde. – A voz arrastada não lhe permitia falar. - Preciso de ti, o meu marido morreu há dois meses, sinto-me triste João, preciso de ti. – Disse ela como uma criança dentro de uma mulher. Ele desligou o telefone, pousou-o devagar na cabeceira, como se quisesse prolongar ainda mais a agonia de um ato de coragem. Adormecera como se não quisesse acordar. Tornara-se vulgar o cheiro a velho, ao fim de algum tempo até os espelhos deixaram de refletir as imagens dos dias que passam, talvez por causa disso já não se via ao espelho tantas vezes como os jovens imaturos. E as sopas, sempre as mesmas, deslavadas, o arroz, sempre o mesmo e também as mesmas batatas nos mesmos pratos brancos amarelados, assim como os mesmos sapatos e as camisas brancas ou azuis. Naquele dia todas as camisas pareciam diferentes e os sapatos quase novos e engraxados, até o café tinha um cheiro diferente, toda a solidão era um só pensamento alastrado durante dias e anos, impresso nas mãos dum corpo enrugado. A manhã era diferente, sobretudo cinzenta mas como se o sol brilhasse saiu à rua e a voz dela acompanhou-o, ouvia-a num murmúrio suave, confiscado entre o sonho e o sono. Fez o mesmo trajeto, passava à porta da oficina do António, o cheiro a gasolina e óleo fundia-se com o cheiro a pão da pastelaria ao lado. Ouvia Time is on my side dos Rolling Stones no seu leitor de mp3 que o neto lhe ofereceu num dos últimos aniversários, que ironia, ao mesmo tempo a voz dela no interior da sua cabeça, não sabia se estava contente por o marido ter batido as botas ou por valentia lhe ter desligado o telefone na cara, quebrando assim anos de solidão intensa. O velho estava diferente, parecia uma outra vida, apanhara o autocarro e queria almoçar peixe assado em Lisboa, sentar-se num restaurante qualquer, beber um copo de vinho e andar, andar por aí como andam os miúdos novos, como se não tivesse mais nada para fazer, como se os seus sapatos fossem novos e necessitassem de ser acomodados aos pés. Caminhava distraído pela cidade, os sons eram todos diferentes, os cheiros todos extraordinários e as paredes, essas já não se moviam contra ele num apertado gesto constrito, o coração já não fintava as ruas nem se mascarava perante os olhos quentes e frios das pessoas, em vez disso misturava-se com a vida dos que por ele passavam naquele dia, onde todos saíram à rua para lhe dar as boas vindas. De regresso a casa, mãos nos bolsos, a descontração constante de um homem apaixonado mas visivelmente cansado, reparou ao longe abeirada na sua porta, o semblante de uma mulher, ajeitou os óculos e olhou-a, a mesma pele branca e a mesma face rosada que deixava transparecer suavemente as veias do queixo, aquelas veias que ele tanto conhecia, que ele tanto beijara. O cabelo dourado, longo e liso caído sob os ombros. Ela esperava-o, como se aguardasse o infinito, atenta à rua como uma adolescente à espera de um beijo prolongadamente eterno, até que o viu. Numa camara lenta de sentidos os olhos cruzaram-se como se cruzam todos os olhos gémeos, sem preconceito fixando as testas, os narizes, as bocas, os lábios, as rugas, os corpos e o tempo num só momento. Não sei quanto tempo deixou o tempo que ficassem naquele estado de embriaguez, mas a língua do velho cujos discursos treinara durante anos vezes sem conta ficara presa, a escassos metros, escapando-lhe apenas da boca um soluço, seguido de outro, uma lágrima e depois outra, talvez as suficientes para levar as mãos à cara. Sim, os homens também choram e os velhos por vezes lacrimejam escondidos, como se a vergonha lhes ocupasse o lugar da humanidade, sem temor ela alcançava-o num caminhar desesperado, como se toda a eternidade dependesse daqueles dois velhos miúdos, e o abraço foi terno e apertado, cabia dentro dele todo o universo onde as faces se encontravam e as lágrimas se misturavam numa alquimia perfeita, as mãos trémulas percorriam as costas, os braços a cara e o calor era morno, humano, demasiado humano, fazendo crer que os velhos também amam, também sentem, também vivem.