quarta-feira, março 18, 2020

Acordo no escuro sem saber bem porquê. Não há barulho nenhum, nenhum sonho estranho que eu me lembre, nada. Só esta sensação de estar a cair e ser interrompido. Estiquei a mão à procura do telemóvel na mesa de cabeceira, carrego no botão. 3h23. Foda-se! Claro. Nunca são quatro da tarde, é sempre esta merda de hora.

Fico deitado uns segundos a olhar para o ecrã, como se ele tivesse alguma resposta. Não tem. Duas notificações sem sentido, um e-mail qualquer, uma app a dizer que devia ter meditado. Desligo. O quarto volta a ficar negro. Fecho os olhos outra vez, mudo de posição, virar para o outro lado. O corpo já acordou, a cabeça também. Se ficar aqui, vou só enrolar-me nos lençóis a pensar nas mesmas merdas de sempre.

Sento-me na cama. As costas protestam, faz 6 anos que não meto os pés no dojo as pernas doem-me, a necessidade extrema de treinar, o colchão conhece demasiado bem o molde do meu corpo. A casa está completamente calada. Não é só o silêncio da noite, é o silêncio deste ano, menos carros, menos gente, menos tudo. Agora toda a gente dorme em casa, ou finge. Os miúdos hoje não estão aqui, estão com a mãe. A ausência deles aumenta o eco, expande a tristeza.

Levanto-me devagar, caminho no escuro como quem já fez este percurso demasiadas vezes. Chego à cozinha, acendo a luz fraca do exaustor. A luz amarela desenha sombras feias na parede, realça a loiça que ficou a secar, o pano molhado esquecido na mesa, um íman no frigorífico com a foto deles.

Abro a torneira, encho um copo de água mas lembro-me logo que esta água do Montijo é uma merda, tem mais calcário que o deus me livre, encosto-me ao balcão enquanto bebo. A água está fria, escorrega pela garganta, não resolve nada. Penso que o mundo anda em pânico com medo de morrer e eu, às três  da manhã, tenho mais medo de continuar exatamente assim durante anos. Pouso o copo, passo a mão pela cara, suspiro fundo, como se isso ajudasse a empurrar o ar para dentro.

Vou para a sala. Acendo outra luz fraca. A sala à noite parece ainda maior, como se o silêncio afastasse os móveis uns dos outros. A mesa, o portátil fechado, o carregador enrolado, o caderno, uma caneta, um copo vazio do café da tarde. Trabalho aqui desde que começou esta palhaçada da pandemia. O que antes era sala agora é escritório, refeitório e consultório de crise existencial, tudo aqui na minha casa, a unica coisa que me mantém alegre é ver brinquedos espalhados por todo o lado, sinónimo de que os putos brincam, amo-os.

Sento-me no sofá. Fico uns segundos sem fazer nada, só a ouvir o prédio respirar: um cano, um passo lá em cima, um carro ao longe. Depois agarro o caderno para mim e abro-o. As páginas estão cheias de outras noites como esta. Poemas, frases, desabafos, tudo misturado. Vejo letras do início deste ano. É como folhear o meu historico clínico.

Pego na caneta. Não penso muito, começo a escrever porque sei que se não escrever fico só aqui sentado a aumentar a pressão no peito. Escrevo que acordo outra vez a meio da noite, que olho para o telemóvel, que vejo as notícias, que o mundo está à rasca com um vírus e eu continuo à rasca com a minha cabeça. Escrevo que toda a gente diz “vai passar” e que eu já ouvi essa merda antes, em outros contextos, e sei que às vezes passa mas não melhora – só se transforma noutra merda qualquer.

Penso no trabalho. Puta que os pariu, passo os dias a aturar incompetentes preso a videochamadas, tickets, programação de merda, mensagens, “podes ver isto com urgência?”, “é importante”, “é crítico”. Trabalho mais horas em casa do que antes, porque o computador está sempre ali, a meio metro de mim. Se respondo, sou competente. Se não respondo, sinto-me culpado pela incompetencia deles. Não há fronteira nenhuma entre “estar em casa” e “estar a trabalhar”. É tudo o mesmo sítio, a mesma cadeira, o mesmo cansaço.

Penso nos miúdos. Quando eles estão aqui, há barulho, desenhos, perguntas, discussões sobre filmes, gargalhadas, birras, pratos sujos, vida, vida é isso que existe quando eles estão aqui. Faço o pequeno-almoço, digo para lavarem as mãos dez vezes, tento ser pai e mãe porque a mãe não quer saber, tento não falhar demasiado. Quando não estão, como hoje, a casa parece um cenário depois de alguém desmontar a festa. As coisas estão arrumadas demais, o silêncio sobra.

E, como se não bastasse também apareces tu. Não preciso de fazer esforço. Basta estar acordado a esta hora que a tua memória vem sozinha. Já não é o choque dos anos anteriores, mas também não é distância. É uma presença difusa, uma sombra que se senta ao meu lado como se tivesse lugar marcado, já não te vejo há anos, mas quando envias mensagem a dizer que tens saudades... foda-se cai-me tudo. Vejo flashes rápidos, uma conversa, um café, o teu sorriso, um toque, um dia qualquer em que eu ainda acreditava que podiamos ter uma vida.

Fecho os olhos por um instante, deixo isso passar pelo corpo, abro de novo e escrevo mais uma linha qualquer sobre saudade, sobre algo que já acabou mas continua a morar aqui. Não preciso de ser bonito, só preciso de ser honesto. É isso que tento fazer não mentir no papel, pelo menos.

Pego no telemóvel, por impulso abro as notícias. Vejo números de infetados, de mortos, gráficos, especialistas em tudo, gente a gritar em caixas de comentários. Fico cansado ao fim de trinta segundos. Fecho. Abro o bloco de notas, leio uma frase qualquer que escrevi há meses, sobre o ar ficar irrespirável, sobre palavras acumuladas no peito, sobre não caber bem neste mundo. Dou um sorriso curto. Sou consistente na desgraça, pelo menos. 

Pouso o telemóvel na mesa, com o ecrã virado para baixo. Não quero ver mais nada.

Volto ao caderno. Escrevo que o mundo está com medo de morrer e eu tenho medo de continuar assim, que o tempo todo em casa está a dar demasiada oportunidade para ouvir a minha própria cabeça, que há dias em que tudo parece suportável e outros em que respirar parece trabalho a mais. Escrevo que sinto falta deles a correr pela casa, a chamar “papá” por tudo e por nada, e que isso, por mais cansativo que seja, ainda é a única coisa que me amarra à realidade de forma decente.

Fico alguns minutos calado depois de pousar a caneta. Sinto o corpo mais cansado do que quando me levantei da cama. Não há epifania, não há paz, não há luz divina. Há só uma pequena sensação de que aquilo que estava a rodar cá dentro já não está totalmente preso. Está em cima do papel, o que é ligeiramente menos sufocante.

Fecho o caderno e levanto-me, apago a luz da sala, volto para o quarto. Deito-me outra vez, no mesmo lado da cama de sempre. O colchão volta a encaixar o meu peso. Olho para o teto que não vejo, porque está escuro, mas sei exatamente como é. Penso que amanhã vou acordar, trabalhar, responder a e-mails, talvez ir ao supermercado, buscar os miúdos, ouvir mais notícias sobre números e curvas e merdas que eu não controlo.