Há muitos, muitos anos, talvez até tantos quanto poderemos pensar, houve um fantasma, era um homem que pela sua morte se tornou numa alma penada, não é que tivesse penas de pato, ganso ou até de avestruz. Não, nada disso, mas de facto não era um qualquer fantasma, nem sequer era assustador ou assustava alguém como é suposto os fantasmas fazerem, pelo menos os que eu conheço.
Certo dia, depois de fazer todas as coisas que os fantasmas fazem pela manhã, ele deambulava por onde passeava todos os dias, à mesma hora e para seu espanto reparou que o seu relógio estava parado. Algo que ele nunca tinha dado conta porque raramente se dava conta do tempo. A coisa preocupou-o tanto que naquele momento ele parou, ali mesmo no meio da rua e ficou a olhar atentamente para o ponteiro que não se movia, que parecia estar morto como ele. Pensou para si mesmo “Mas que raio! Querem ver que o meu relógio morreu também?” e começou a correr preocupado a tentar encontrar um relojoeiro. De facto ali perto, havia há muitos anos uma relojoaria, uma loja onde fabricavam e arranjavam os mais complexos relógios. Sem saber as horas só pensava no seu relógio parado, andou e andou até que encontrou finalmente uma loja com uma grande porta de madeira onde se podia ler em letras bem grandes “O tempo não para, e os relógios também não devem parar.”. – Que ironia – Pensou. Assim que chegou ficou parado à porta, o seu inexistente coração batia como um relógio apressado, infelizmente não conseguiu entrar na loja, um pequeno cartaz anunciava que fechara para férias. Cabisbaixo, o fantasma olhava para o seu relógio fixamente e pensava se alguma vez mais iria ver os seus ponteiros a andar novamente. Quando se deu conta, era de noite e apercebeu-se uma vez mais que o seu relógio tinha as mesmas horas, as horas em que tinha parado, precisamente seis e trinta e quatro. Já nem ele sabia que horas eram, perdera a noção do tempo, mesmo em vida as horas para ele pareciam nunca passar, mas, naquela noite, era uma noite diferente, o seu relógio tinha parado e com ele o tempo, como que petrificado, isolado de qualquer atividade numerológica. Aquele fantasma sentia-se verdadeiramente deprimido.
Sentou-se num banco de jardim ali perto e decidiu esperar que a grande porta de madeira se abrisse. Passou um dia, dois dias, três dias, uma semana, duas semanas e nada. - Mas que raio! Quem será que tira tantos dias de férias? – Pensou indignado. Ao pensar isto, reparou num pequeno homem que caminhava em direção à porta e pensou: “Finalmente alguém para me abrir a porta e arranjar o meu relógio.” Levantou-se e saiu a correr, entrou, falou, esperou e falou novamente, mas ninguém o ouvia, nem sequer o viam, a não ser um pequeno e stressado cão que ali estava sentado a abanar o seu rabo preto, o cão via-o, dizem que os cães veem os fantasmas, não sei, é o que dizem. O pequeno homem atrás do balcão disse em voz baixa: “Estou a ver aqui um relógio que não trabalha.”. Rapidamente um sorriso surgiu na cara do fantasma. Pensou logo que era ele e o seu relógio, e num ápice tirou o relógio do pulso e poisou-o em cima do balcão. O relojoeiro nem sequer olhou para o relógio, para ele não havia nada no balcão a não ser uma velha caixa registadora e uma pequena caixa de velhos botões. O fantasma triste disse: - Mas que raio! Se ao menos alguém me ouvisse! - Mas ninguém o ouviu, exceto o cão que o olhava com olhos de tédio e já não abanava o rabo preto. Voltou a pegar no relógio e colocou-o no pulso, no momento em que se preparava para apertar a bracelete reparou em algo que nunca tinha reparado antes, um pequeno botão redondo situado no lado oposto ao número três, um pequeno mecanismo escondido. Curioso o fantasma decidiu rodar aquele pequeno botão redondo para trás, mais precisamente duas pequenas voltas. Naquele preciso instante, o fantasma e o seu relógio regressaram ao banco de jardim, precisamente em frente à loja do relojoeiro e precisamente onde ele tinha estado dias antes. Confuso, voltou a rodar o botão duas voltas para a frente, para seu espanto deu consigo instantaneamente dentro da loja do relojeiro novamente no dia presente. – Que raio de magia é esta? – Pensou ainda mais confuso. Decidiu então dar voltas e voltas para trás no botão redondo e deu consigo no banco de jardim, no primeiro dia em que se tinha sentado à espera que a relojoaria abrisse. Ele não queria acreditar no que estava a acontecer e voltou a rodar, a rodar e a rodar para trás aquela pequena roda mágica, rodou-a tantas vezes quantos os dias o seu relógio tinha parado. Mais precisamente no início do dia, reparou que quando acordou não tinha dado corda ao seu relógio e assustou-se como se fosse um fantasma pela primeira vez. Como se ele nunca se tivesse assustado. De seguida lembrou-se que era um fantasma, quis rodar a roda do seu relógio para momentos antes da sua morte, mas, simplesmente não conseguia, a pequena roda ficava presa, como que bloqueada, parecia não querer voltar tanto tempo atrás no tempo, talvez porque o corpo do fantasma não estava mais lá, estava ausente. Ele compreendeu então que o grande desconhecido era o seu estado atual e ficou triste, triste como nunca um fantasma até então teria ficado, pensava em coisas que nunca tinha pensado e deu conta de que não iria mais sentir o abraço apertado de alguém. Profundamente triste voltou a rodar a roda do seu relógio para a frente, rodou e rodou e rodou, precisamente até ao dia em que pousara o relógio no balcão do relojoeiro. Saiu da loja e reparou que havia uma paragem de autocarro com uma enorme tabuleta que dizia “Destino: Nova vida”. Sentou-se e aguardou.