Acordei às três e quarenta e dois, outra vez...
O relógio brilhava no escuro como se me estivesse a gozar:
“Olha ele, o poeta da merda, mais uma noite sem dormir.”
Levantei-me devagar, aquele peso de quem já viveu vidas a mais dentro da mesma pele. A casa estava silenciosa, os miúdos a dormir, o mundo a fazer de conta que é normal. Fui à cozinha, abri o frigorífico, fechei o frigorífico. Nem fome, nem sede. Só aquele buraco no peito que já devia pagar renda.
Sentei-me à mesa com o caderno, aqueles cadernos de capa preta, compro-os as quantidades. A velha história.
Caneta, papel, e um tipo de quarenta e tal anos que ainda escreve como se tivesse vinte e estivesse prestes a explodir de amor e de medo.
“Se eu não fosse seria um sinónimo de coisa nenhuma”, escrevi num poema recente. E parei.
Conhecia aquela voz. Era minha, mas de outro tempo.
Tanta folha branca rasgada, tanta madrugada que cheira a nada e a ti ao mesmo tempo.
Tu.
Caralho, tu outra vez.
Não estávamos juntos há anos, mas continuavas a aparecer na mesma hora: entre as três e as quatro, quando o silêncio da casa fica grosso como fumo de cigarro barato e o corpo decide lembrar-se que tem coração.
Um coração burro, insistente, desses que não lê o contrato da vida e assina tudo o que aparece.
Agarrei na caneta com mais força.
Senti o velho ritual: primeiro vem a saudade, depois vem a raiva, depois vem a poesia a tentar salvar o que resta.
— Vai passar — murmurou uma parte de mim.
Mas eu conheço bem essa frase.
“Vai passar e quando passar vou-me embora”, escrevi no caderno.
A merda é que passou, eu continuei aqui e nunca fui embora de lado nenhum.
Fiquei preso aqui, na mesma pele, na mesma ausência.
Há uma suavidade que permanece nos lugares onde a luz não chega.
Tu eras essa suavidade, foda-se. O problema é que ao mesmo tempo eras a ferida aberta debaixo dela.
Lembrei-me das noites em que eu dizia que só queria um abraço, um beijo, qualquer coisa, e vinha em troca um silêncio cheio de medos teus. Essa tua parte racional mais neutra, faz com que decides mais com a cabeça do que com o coração, isso sempre me pareceu um crime perfeito: matava-me devagar, sem deixar provas.
Encostei as costas na cadeira, olhei para o teto como se Deus tivesse lá deixado um post-it esquecido aqui por cima.
— O que é que eu ainda estou aqui a fazer?
A resposta veio como sempre: escrever.
Escrever é a forma que arranjei de não morrer afogado naquilo que sinto.
Escrevo para lembrar que vivi. Para lembrar que amei como um idiota.
Escrevo porque quando não escrevo, a tristeza cresce como erva daninha na cabeça.
Lembrei-me de quando decidi deixar de comer carne porque percebi que o verdadeiro animal era eu.
Continuo a pensar o mesmo.
Continuo a achar que a humanidade é um erro ortográfico que alguém se esqueceu de corrigir.
A única coisa que presta, às vezes, é isto: um tipo sozinho à mesa, a sangrar palavras para um caderno, enquanto toda a gente finge que está tudo bem.
Pensei no miúdo que fui, naquele puto de quinze anos que te beijou no elevador, faminto de vida que tu amaste sem filtros.
Matei esse cabrão algures no caminho, asfixiei-o devagar com empregos, contas, obrigações, responsabilidades, reuniões de merda, senhas retiradas em repartições públicas e conversas vazias sobre o tempo.
Mas há noites... há noites fodidas, como esta, em que ele volta.
Volta quando escrevo “Deste modo eu penso em ti como se a complexidade da vida estivesse em descrever-te”.
Volta quando confesso que ainda tenho fome da tua boca, mesmo que já só exista na memória.
É ridículo.
Um homem feito, pai, trabalhador, a falar sozinho na cozinha com um fantasma.
Mas é isso ou enlouquecer de vez.
A caneta recomeçou a mexer-se sozinha:
Numa madrugada já rasgada pelo tempo
Onde o silêncio se confunde com o ar
Eu noturno divago sobre mim
“Numa madrugada já rasgada pelo tempo
Onde o silêncio se confunde com o ar, eu noturno divago sobre mim”
Li em voz baixa.
Soube-me honesto.
Soube-me cruel.
Soube-me pouco.
— Foda-se, isto não chega.
Queria gritar mais alto. Queria escrever como quem parte um copo contra a parede. Queria prender-te ao papel de vez, como quem agrafa um aviso na porta do Universo: “AQUI MORREU UM AMOR DO CARALHO! DO CARALHO”
Mas a verdade é que eu não sei matar-te.
Nunca soube.
O máximo que consigo é isto: transformar-te em poema, em prosa torta, em capítulo de livro que ninguém sabe se vai ficar pronto. Há quem chame a isto arte. Eu chamo sobrevivência, a minha sobrevivência.
Acendi a luz fraca da sala, aquela que não acorda ninguém.
Olhei em volta.
A casa, as coisas, os objetos, o sofá onde às vezes me deito a pensar que a vida podia ter sido outra, se eu tivesse sido menos medroso, ou se tu não tivesses sido sempre tão racional.
Eu, tu, as probabilidades falhadas.
Podíamos ter sido tudo.
Fomos quase.
E o “quase” é uma palavra fodida: pesa mais do que o “nunca”.
Voltei ao caderno.
Escrevi:
“E escrevo, escrevo tudo o que vejo
Escrevo tudo o que sinto”
Olhei para a frase e percebi que já a conhecia, de outra madrugada, de outro ano, de outro eu.
Estava tudo ligado: 2003, 2005, 2010, 2015, hoje.
O mesmo homem, em versões diferentes, a bater nas mesmas paredes invisíveis.
Ri-me sozinho.
— No fim ficam sempre as palavras e uma mão cheia de ilusões. Ou então não.
Fechei o caderno.
O mundo lá fora começava a ficar claro devagarinho, aquele cinzento sujo antes do dia decidir que cor vai usar.
Levantei-me da mesa com a sensação estranha de que, por hoje, tinha sobrevivido.
Não tinha resolvido merda nenhuma: tu continuavas longe, a humanidade continuava uma desgraça, e o miúdo de vinte anos continuava morto algures debaixo das contas por pagar.
Mas eu ainda escrevia.
Enquanto escrevo, ainda estou vivo.
Fui ao quarto.
Olhei para os miúdos a dormir.
Ali estava a única parte da vida que eu não conseguia transformar em poema porque é maior do que qualquer verso.
— Um filho nunca é nosso — pensei. — Mas eles são o mais perto que já estive de Deus.
Tapei-os melhor, respirei fundo.
A saudade de ti continuava cá, mordendo-me o peito.
Mas, pela primeira vez naquela noite, ela cabia dentro de uma frase.
E isso, para mim, já era uma pequena vitória. Uma daquelas vitórias silenciosas que ninguém vê, mas que salvam um homem de se afundar de vez.
Voltei para a cama.
O relógio marcava 5h17.
Talvez dormisse.
Talvez não.
Uma coisa é certa, amanhã de madrugada, se a saudade viesse outra vez, eu estava aqui.
Papel e caneta e este coração que vai sobrevivendo